2.560m de altimetria. 42.195 quilômetros. 336 curvas até cruzar o pórtico de chegada. Instabilidade climática com situações extremas. Nenhuma pessoa normal escolheria passar por isso, mas a Serra não atrai pessoas normais.
Uma semana antes, chuvas torrenciais por dias. Deslizamentos de terra no percurso. A tensão estava no ar por possível adiamento da prova. A organização não deve ter tido noites tranquilas de sono nessa semana pois reajustaram o percurso e tudo estava de pé no dia do ritual (provas são as outras).
Se 2.560m de altimetria já é um desafio, os ajustes de percurso subiram o sarrafo para 2.715m. Se fácil não era, mais difícil ficou. No entanto, não vi nenhum corredor desistir por isso. Todos perfilados em Orleans. A tribo de pessoas que encaram tal desafio é um tanto quanto reduzida e era inacreditável o número de corredores que eu reconhecia minutos antes da largada. Nesse mundo virtual, a Rio do Rastro Marathon nos conectava e desvirtualizava abraços entre corredores. Um abraço em Pernambuco, outro no Rio Grande do Sul, abraço duplo no Distrito Federal. Era o Brasil inteiro com seus representantes prontos para o desafio.
Alguns minutos antes das 7:00h era possível notar um misto de felicidade e apreensão. O relógio parece acelerar junto com os batimentos cardíacos mas como já disse que prova são as outras, é emanado entre os participantes a oração dos Guardiães. Uma conexão espiritual, concentração, respiração. Passa um filme em nossas cabeças.
Chegou a hora e o ritual se inicia. Homens e mulheres pondo-se à prova Serra acima… dada a largada e centenas de corredores percorrem alguns poucos metros para a 1ª curva. Suave. A 2ª no entanto já se tinha uma das mais íngremes. Ok… só faltam 334 curvas.
Quase ninguém andou por ali e aos poucos os metros, os quilômetros vão ficando para trás juntamente com a cidade de Orleans. Lauro Muller é logo ali e abraça os Guardiães ainda cheios de energias e vigorosos. Se não se tem ainda subidas sem parar, temos em estrada de terra batida com constantes sobe e desce. Não se iludam, essas constantes descidas podem machucar a musculatura daqueles que querem acelerar onde a gravidade ajuda.
A facilidade que tivemos para entrar em Lauro Muller, não é a mesma para sair, afinal de contas, depois desse trecho de terra batida onde supostamente temos a parte mais fácil (e estamos descansados), chegamos exatamente na Serra propriamente dita. Agora faltam apenas 284 curvas. O peso nas pernas naturalmente chega, assim como a pressão psicológica pois precisamos alcançar o quilômetro 29,5 antes de 4h10m59s para poder continuar a saga. A Serra nos dá raros momentos de descida ou plano até o quilômetro 37 onde você precisa chegar com 5h40m59. A famigerada santinha. Não que ela seja famigerada e tem quem inclusive pare para suas orações, mas ela apresenta o trecho final da prova onde quase nenhum ser humano será capaz de subir correndo direto, Daí até o final, os que estão bem preparados correm a distância de um poste a outro e descansam até o próximo. Exceto quando aparecem criaturas que apontam máquinas capazes de congelar essas imagens para sempre e os Guardiães conseguem o improvável: Correr.
Estamos falando de horas e vai ficando para trás (e para baixo) um percurso que mesmo moradores da região não ousariam desafiar. Você começa a sentir que está chegando o cume do desafio. Faltam quantas curvas? 6? 5? Só sei que finalmente chegamos ao último quilômetro onde os deuses presenteiam os escolhidos um percurso finalmente plano novamente para você usar aquelas forças que você já não tinha mas que pode ser que tenha sido despejada sobre nós com aqueles seres que apontam máquinas capazes de congelar as imagens.
Finalmente você visualiza o final. Só falta 1 curva e depois disso, chore, grite, se ajoelhe, reze, faça o que quiser, mas se orgulhe muito.
Dizem que 1% das pessoas da Terra já correram uma maratona. Não tenho como provar, mas sinceramente, acredito que seja menos. Subir a Rio do Rastro Marathon então? Não é para qualquer um…
A experiência é dolorosa, mas enfeitiça os participantes que acabam voltando ao ritual no ano posterior. Esteja preparado para se xingar mentalmente inclusive, mas segue a Oração do Guardião caso você sinta o chamado:
“De tempos em tempos, os protetores da serra são convocados pelos Espíritos Guerreiros, para renascer, para vencer os mistérios que ela esconde.
Eles despertam para ir além. Eles vencem os obstáculos do caminho com força, coragem e poder. De onde eles vêm, trazem consigo tudo que é preciso para fazer acontecer.
Eles realizam o que há de mais divino, por onde passam deixam suas marcas e transformam tudo para melhor. Os passos, o suor, o medo, a confiança, a lágrima e o sorriso se unem a fauna, a flora e a história. Cada um faz parte do todo. E todo faz parte de cada um. Eles se pertencem.
Eles têm a missão de proteger os Mistérios por trás da Serra. Eles são os Guardiões da Rio do Rastro Marathon.”
TEXTO POR: Demetrius Carvalho