Os morros da meia de Itaquera e a improvável ajuda de um escritor japonês

Por Rodrigo Casarin, jornalista, editor da Página Cinco e corredor há 6 anos

Tirar a largada da Praça Charles Miller, bem em frente ao finado estádio do Pacaembu, e colocar num estacionamento de shopping. Trocar um circuito cheio de construções históricas por outro repleto de templos de diversas vertentes de certa fé. Soa como boa metáfora do que São Paulo tem virado, não há dúvidas.

            Por outro lado, é bem-vinda a iniciativa de levar a corrida de rua para longe dos lugares mais óbvios da capital. Importante lembrar: a cidade não se resume a meia dúzia de bairros esmagados entre a 23 de Maio e a Marginal Pinheiros. O novo percurso, que parte de Itaquera e traça ruas da zona leste de São Paulo, foi a grande novidade da 16ª edição da Meia Maratona Internacional de São Paulo.

            Quem esperava proximidade e diferentes vistas do Itaquerão provavelmente se decepcionou. O estádio do Corinthians deu as caras vez ou outra, como coadjuvante distante. Ali pelo quilômetro 15, na avenida Calim Eid, um dos pontos mais legais da prova: uma quantidade de gente razoável (e um cachorrinho ou outro) mexendo, incentivando, brincando com os corredores

            Com exceção da São Silvestre, é raro encontrar esse tipo de apoio em corridas por São Paulo. Pode parecer bobagem, mas o incentivo dá uma força danada quando as pernas já estão capengas e a cabeça trabalha para sabotar os planos. Num percurso de rara dificuldade, onde subidas pareciam ser sucedidas apenas por outras subidas, me lembrei de Haruki Murakami.

            Fui para Itaquera após um recorde pessoal na Meia Maratona Internacional do Rio de Janeiro, em agosto do ano passado. Abri o ano com o objetivo de fazer 21km abaixo de duas horas, algo inédito por aqui. Sabia que a corrida do dia 5 de fevereiro, justamente pelos morros do percurso, não era a mais propícia para tal. Ainda assim, cenário animador até o km10. Já no km14 o horror se desenhava: pelos números, seguia em condições de fazer o sub-2. Relógio dizia uma coisa, o corpo dizia outra, no entanto. E ainda haveria alguns morros pela frente.

            Dias antes da prova, lia “Do que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida”, livro no qual o japonês sempre cogitado ao Nobel de Literatura conta um pouco de sua vida como maratonista e triatleta. Publicada por aqui pela Alfaguara em tradução de Cássio de Arantes Leite, é uma obra que, como outros que já li de Murakami, oscila momentos realmente bons, divertidos, com outros tão arrastados quanto eu lá pelo km19.

            Entendo Murakami quando ele comenta como as corridas de longa distância – hábito que considera o mais útil e significativo adquirido ao longo da vida – impacta o seu trabalho. Tal qual na arte, o que está em questão quando colocamos o tênis no pé e saímos por aí é mais entregar o melhor de si do que vencer ou perder, seja lá o que vitórias e derrotas possam significar para um escritor.

            “Forçar a si mesmo ao máximo dentro de seus limites individuais: essa é a essência de correr, e uma metáfora aplicável à vida”, escreve Murakami. “A maior parte do que sei sobre escrever ficção aprendi correndo todos os dias”, registra numa outra oportunidade. Além de renderem ótimos momentos para pensarmos na vida, os treinos e as corridas longas ajudam a trabalharmos a paciência, a termos resiliência para jornadas que exigem muito tempo.

            Não que estivesse refletindo a respeito desses trechos do livro durante o martírio por Itaquera. Como disse, tinha começado bem. Mas depois de morros, túneis, morros e mais morros, a situação era realmente complicada. O que estou fazendo aqui? Por que não desisto disso? São pensamentos recorrentes quando a coisa aperta. Para um ateu, também pesa a falta de algum deus ou de qualquer outra entidade para quem apelar. Nenhuma divindade daqueles tantos templos pelo caminho poderia me dar uma força.

            Quando o ritmo já estava bem lento, o corpo pedia por descanso e uma dor logo abaixo da batata da perna direita soava como desculpa perfeita para diminuir de vez o ritmo e se arrastar numa caminhada até a linha de chegada, lembrei que eu e Murakami temos algo em comum além do gosto pela corrida e pela literatura: uma vaidade. A vaidade bem específica de, numa prova, fazer o trajeto todo correndo, nem que seja no trote mais sem vergonha do mundo. Caminhar, jamais. E assim foi até cruzar a linha de chegada – logo após outro morro e onde serviam uma água bem mais quente do que o desejado.

            No dia seguinte, lembrei outro ponto que me aproxima do japonês. Um ponto em comum entre praticamente todos os corredores, creio. “Depois de tudo terminado e algum tempo ter se passado, esqueço a dor e o sofrimento e já estou planejando como posso fazer um tempo um pouco melhor na corrida seguinte”. Também está em “Do que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida”. Fato. Depois de Itaquera, já procuro pela próxima meia maratona.

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